Intervenção feita pelo Professor Nuno Cunha Rodrigues durante a 1ª Jornada de Debate sobre o Novo Código dos Contratos Públicos, evento organizado pela APMEP a 21 de Junho de 2017 na Universidade Lusíada em Lisboa.
Começo por cumprimentar o presidente da mesa, Senhor Professor Sérvulo Correia exprimindo o privilégio que sinto em poder participar numa mesa presidida pelo Senhor Professor.
Agradeço à APMEP e ao Senhor Professor Valadares Tavares o amável convite para participar nesta 1.ª jornada de debate sobre o novo Código dos Contratos Públicos ou, em rigor, sobre o processo de revisão do Código dos Contratos Públicos.
Entendo que é crucial promover o debate sobre contratação pública.
É por todos sabido que foi aprovada recentemente, em reunião de Conselho de Ministros, uma alteração ao Código dos Contratos Públicos que ainda não é publicamente conhecida.
Esta circunstância dificulta a realização do debate, ainda que sejam já conhecidas algumas soluções preconizadas pelo legislador nacional na versão entretanto aprovada.
Ora, sabendo, por um lado, que devemos aproveitar esta sessão para antecipar e debater algumas das soluções que serão acolhidas na versão revista do Código dos Contratos Públicos e, por outro lado, que a APMEP e o Professor Valadares Tavares deram-me a indicação que teria dez minutos para realizar a minha intervenção, lembrei-me de trazer para este debate dez tópicos para serem comunicados nos dez minutos que disponho.
Proponho-me, por isso, assinalar dez tópicos sobre aspectos que considero serem da maior relevância no Código que se avizinha ainda que, faço notar, estes dez tópicos não abranjam todas as novidades que o novo regime da contratação pública a nível nacional trará.
Vejamos então, em dez minutos, os dez tópicos que aqui trago:
- A promoção do acesso a pequenas e médias empresas traduzida, entre outros aspectos, na obrigatoriedade de divisão em lotes.
Tenho, para mim, que esta é uma das grandes novidades que trará, seguramente, algumas dificuldades jurídicas.
É que a divisão em lotes passa a ser obrigatória devendo a entidade adjudicante justificar porque razão não procede à divisão em lotes, caso proceda dessa maneira.
As dificuldades jurídicas decorrem, desde logo, da circunstância se só ser possível proceder a uma correcta avaliação sobre a divisão (ou a não divisão) em lotes de forma casuística, isto é, analisando, no caso concreto, quais os bens e serviços a adquirir.
Recordo, a este propósito, um caso recente analisado pelo Tribunal da EFTA, em 22 de dezembro de 2016, o caso Ski Taxi, processo E-03/16.
Este caso explica-se rapidamente.
Em 2010, o Hospital de Oslo, lançou um concurso público para o transporte de doentes que foi dividido nove lotes organizados por zonas geográficas vizinhas do Hospital.
Para dois desses lotes, o Hospital só recebeu uma proposta, apresentada conjuntamente por duas companhias de taxi que o Hospital esperava que concorressem entre elas.
Neste contexto, o Hospital considerou que estávamos perante um cartel e cancelou o procedimento relativamente a estes dois lotes, comunicando a situação à Autoridade da Concorrência na Noruega.
Consequentemente, o Hospital lançou um novo procedimento e redesenhou as áreas geográficas envolvidas, que passaram de duas para cinco, tendo subsequentemente sido apresentadas propostas pelas mesmas duas companhias de táxi em conjunto bem como por duas outras concorrentes. O Hospital acabou por celebrar acordos-quadro com todas estas empresas.
O que fica deste caso é a necessidade de se proceder ao desenho, com rigor e inteligência, dos lotes para incentivar a concorrência.
Repare-se que, neste caso, inicialmente apenas duas empresas em conjunto tinham-se apresentado aos dois primeiros lotes mas, quando estes dois lotes foram alargados para cinco lotes, mais pequenos, mais duas outras empresas acabaram por se apresentar à concorrência.
Por outro lado, promove-se igualmente a participação de PME’s uma vez que as entidades adjudicantes passam a ter de aceitar a participação de todos os operadores económicos que possuam uma situação financeira adequada para a execução do contrato uma vez que o volume de negócios anual exigido não pode ser superior ao dobro do valor estimado do contrato.
- A alteração do regime do ajuste directo.
É sabido que a maior parte da contratação pública em Portugal, quer em termos de volume quer em termos de número de contratos adjudicados é realizada através do procedimento pré-contratual de ajuste directo.
Com a alteração introduzida ao Código, limita-se a utilização do procedimento de ajuste direto com consulta a apenas uma entidade e confere-se novamente autonomia ao procedimento de consulta prévia, com consulta a três entidades, previsto para as aquisições de bens e serviços entre os € 20 000 e € 75 000 e para as empreitadas de obras públicas entre € 30 000 e € 150 000.
Prevê-se igualmente a inclusão das pequenas empreitadas de obras públicas no regime de ajuste direto simplificado (até 5.000€).
Aqui, uma breve observação.
Será necessário ter alguma atenção na utilização do ajuste directo uma vez que o Código proíbe, como é sabido, o fracionamento da despesa, nos termos do atual artigo 22.º.
Com efeito, o Código dos Contratos Públicos determina que a escolha do procedimento pré-contratual deva considerar, para efeitos de apuramento do valor do contrato, o somatório dos preços contratuais relativos a todos os contratos já celebrados e dos preços base de todos os procedimentos ainda em curso, quando a formação desses contratos ocorra ao longo do período de um ano a contar do início do primeiro procedimento, quando estejam em causa prestações do mesmo tipo, susceptíveis de constituírem objecto de um único contrato.
Ora pode suceder, no futuro, uma situação em que uma entidade adjudicante ultrapasse o limite de 20.000€ na adjudicação anual, por ajuste directo, a um fornecedor, de bens e serviços.
Poderá, neste cenário, estar em causa a violação dos novos limites legais para o ajuste directo à luz da proibição de fraccionamento da despesa anteriormente referida.
Recordo que o Tribunal de Contas é particularmente exigente neste domínio uma vez que considera que “prestações do mesmo tipo” equivalem à despesa realizada em cada rubrica orçamental (ainda que, pessoalmente, não possa estar de acordo com este entendimento do Tribunal de Contas).
- A ampliação das possibilidades de se proceder à contratação pública transfronteiriça;
As directivas de 2014 vieram afirmar a possibilidade de se proceder à contratação pública transfronteiriça.
Esta hipótese reflete-se, desde logo, no novo Documento Europeu Único de Contratação Pública (DEUCP), aprovado nos termos do Regulamento de Execução (UE) 2016/7 da Comissão, de 5 de janeiro de 2016.
Este documento permite a todos os fornecedores de bens e serviços submeter propostas em qualquer Estado-membro da União Europeia, de uma forma simples.
Facilita-se e fomenta-se, também desta forma, a actividade das pequenas e médias empresas.
Por outro lado, e na óptica das entidades adjudicantes, as directivas – e o Código dos Contratos Públicos revisto – facilitam o processo de aquisição agregada através da possibilidade:
- De utilização de procedimentos de aquisição conjunta entre entidades adjudicantes de diferentes Estados-membros;
- Aquisição através de centrais de compras transfronteiriças, podendo aqui assinalar-se o exemplo dos municípios de Lisboa, Paris e Roma que visa, aparentemente, criar uma central de compras para veículos eléctricos;
- A emergência da tensão entre a transparência e a concorrência, à medida que aumenta a contratação pública electrónica,
As novas directivas – e o Código revisto – vieram reforçar as medidas de transparência e boa gestão pública na contratação pública.
A implementação definitiva da contratação pública electrónica permitiu – e permitirá – igualmente reforçar a transparência.
Porém, aqui é preciso ter presente que um excesso de transparência pode estimular o surgimento de fenómenos de cartelização entre fornecedores, pondo em causa o princípio da concorrência substancialmente reforçado nas directivas de 2014.
Um aspecto positivo que decorre da revisão em curso, surge com a alteração da regra de fixação do critério do preço anormalmente baixo, uma vez que foi eliminada a sua indexação ao preço base que, muitas vezes, gerava situações de alinhamento de preços entre concorrentes, distorcendo a concorrência e prejudicando a entidade adjudicante.
- Concretização de políticas horizontais ou políticas secundárias, em particular políticas ambientais e políticas sociais através da contratação pública.
A fixação como critério regra de adjudicação, do critério da proposta economicamente mais vantajosa, tendo por base a melhor relação qualidade-preço e o preço ou custo, utilizando uma análise custo-eficácia, nomeadamente os custos do ciclo de vida, vem reforçar a possibilidade de utilização de critérios ambientais ou sociais na contratação pública.
Permite-se, dessa forma, afirmar conhecida jurisprudência do TJUE a este propósito como sucedeu com o acórdão Concordia Bus a propósito dos critérios ambientais ou o acórdão Regiopost a propósito de critérios sociais.
Certo é que estão ainda por esclarecer algumas das metodologias de cálculo referentes ao ciclo de vida do produto e ao impacto ambiental ou social que pode ser considerado.
- O recurso à arbitragem na contratação pública.
Sei que este tópico será desenvolvido num outro painel que terá lugar nesta manhã.
Temos exemplos de sucesso no recurso à arbitragem de litígios entre entidades públicas e entidades privadas.
Refiro-me, em concreto, à arbitragem tributária, que já funciona e que tem dado origem a cerca de 700 processos que são concluídos anualmente.
Creio que podemos aproveitar essa experiência para aplicar, de uma vez por todas, o recurso à arbitragem institucionalizada na contratação pública.
Trata-se de uma possibilidade que será prevista no CCP revisto e que está em linha, aliás, com o que já está resulta da possibilidade aberta pelos artigos 180.º a 187.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
- As novas possibilidades de celebração de acordos de cooperação horizontais entre entidades adjudicantes;
A revisão do Código em curso possibilita o alargamento do regime dos contratos entre entidades do sector público, abrangendo outras formas de cooperação entre entidades públicas.
O regime da chamada contratação “in-house” é, de alguma forma, clarificado, ao prever-se que o “essencial da atividade prestada à entidade adjudicante” deve equivaler a uma percentagem mínima de 80%.
Por outro lado, o novo regime da contratação pública passa a abranger situações em que as entidades públicas adjudicantes celebram contratos entre si sem o envolvimento de empresas controladas (cooperação horizontal).
Pode ser o caso, por exemplo, de vários municípios que decidem partilhar recursos ao nível da gestão de resíduos, em que alguns deles realizam serviços específicos para todos os outros.
Neste cenário, os contratos podem ser celebrados entre essas entidades públicas – sem participação de entidades privadas – caso se verifiquem, de forma cumulativa, as seguintes situações:
- O contrato deve estabelecer a forma de cooperação que garanta que os serviços públicos que têm de assegurar são realizados de modo a atingir os objectivos que têm em comum;
- O estabelecimento dessa cooperação deve basear-se apenas em considerações de interesse público;
- As atividades desenvolvidas no mercado fora dessa cooperação têm de ser rigorosamente limitadas.
Por outro lado clarifica-se que a simples transferência de competências e responsabilidades, de uma entidade pública para outra, tendo em vista a execução de tarefas ou funções públicas, não é abrangido pelo regime da contratação pública desde que daí não resultem quaisquer pagamentos como contrapartida dos serviços transferidos.
- Interacção entre o regime da contratação pública e o regime da despesa pública, em particular a nova Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado.
Tem-se falado, ultimamente, num novo paradigma das finanças públicas, em que os serviços públicos passam a ser responsabilizados pela execução dos seus orçamentos podendo ser premiados caso gerem poupanças com os mesmos.
É neste contexto que se compreende a necessidade de fundamentação especial dos contratos de valor superior a € 5 000 000, com base numa avaliação custo-benefício – com exceção dos contratos que tenham por objeto a contratação de bens ou serviços de uso corrente.
Trata-se, aqui, de aproximar o regime da contratação pública de elevado valor das normas já existentes e aplicáveis a parcerias público-privadas também elas particularmente exigentes na necessária análise prévia da relação custo-benefício.
Também neste domínio, o surgimento da figura do gestor do contrato, pode contribuir para a concretização de um novo modelo de finanças públicas.
Em contratos com especiais características de complexidade técnica ou financeira ou de duração superior a três anos, o gestor deve elaborar indicadores de execução quantitativos e qualitativos adequados a cada tipo de contrato, que permitam, entre outros aspetos, medir os níveis de desempenho do cocontratante, a execução financeira, técnica e material do contrato.
Porém, falta ainda apurar, com rigor, as funções e responsabilidades que podem ser assacadas ao gestor do contrato.
Cumpre ainda assinalar que as directivas de 2014, e bem-assim, a revisão do CCP que vier a ser operada, incluem, pela primeira vez, regras relativas à modificação de contratos durante o seu período de vigência (cfr. artigo 72.º do CCP) cuja aplicação dará seguramente lugar a debate doutrinário e à intervenção dos tribunais.
- Vacatio legis da alteração ao Código dos Contratos Públicos.
Creio que não constitui segredo para ninguém que o Código revisto terá uma vacatio legis, isto é, um período até à entrada em vigor, muito longo.
Fala-se que entrará em vigor no dia 1 de janeiro de 2018.
Esta circunstância é positiva porque irá permitir fomentar o debate, como aqui estamos a fazer hoje, estudar e perceber as alterações introduzidas.
Porém, em sentido oposto, é igualmente certo que já decorreu o período de transposição das directivas há muito tempo – mais de um ano – razão pela qual qualquer particular está em condições de invocar o efeito directo vertical de algumas das normas das directivas ainda não transpostas para questionar a legalidade de procedimentos pré-contratuais que estejam a decorrer ou tenham decorrido desde o fim da data limite para a transposição.
- Necessidade de advocacy e de pedagogia junto das entidades adjudicantes e dos fornecedores.
A Comissão Europeia fez, com as directivas de 2014, uma evolução interessante.
Se, no passado, as directivas procuravam limitar ou condicionar a actividade das entidades adjudicantes – para reduzir a discricionariedade destas e permitir um melhor escrutínio judicial – as directivas de 2014 vieram ampliar a capacidade de atuação das entidades adjudicantes comparativamente com o que sucedia no passado.
Como referi anteriormente, há diversos domínios que reforçaram a capacidade de atuação das entidades adjudicantes.
É compreensível que algumas destas ofereçam resistência à concretização de novas soluções legais, nomeadamente porque tal pode vir a ser motivo de litígios judiciais.
Consequentemente, a formação das entidades adjudicantes será essencial para garantir o sucesso da nova legislação.
Aqui, o papel do regulador da contratação pública – o IMPIC – será determinante, nomeadamente por via da soft law que será chamado a divulgar, por via de guidelines, orientações ou minutas de contratos que pode oferecer.
Por outro lado, os encontros informais entre entidades responsáveis pela contratação pública em Portugal – Tribunal de Contas, IMPIC, Autoridade da Concorrência, ESPAP, Inspecção-Geral de Finanças – poderá contribuir para antecipar problemas e oferecer soluções às entidades adjudicantes.
Minhas senhoras e meus senhores:
São estes, em síntese, os dez tópicos que quis trazer hoje para este debate.
Como viram, não cobri todo o espectro de novidades que em breve serão publicitadas.
Espero, no entanto, ter contribuído para suscitar questões que tornam, a meu ver, a contratação pública numa disciplina científica aliciante e interdisciplinar.
Muito obrigado pela vossa atenção.
Nuno Cunha Rodrigues
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